A volta das voltas. Chegamos, partimos e lá voltamos sempre!

10
Out 10

(Continuação – No tempo da ditadura, durante a Guerra Colonial)

 

Oh pessoal, então há lugar para mais um na conversa? (pergunta o Jo’quim Cagachuva que chegava vindo do lado da pedreira do Ti Miguel)

 

Há pois! (dizem os outros três) e (acrescenta o Caladinho) Com muito cuidado porque eles andam aí…

 

Diz o Jo’quim Cagachuva: Venho da “ajuntadeira”, fui buscar estes pares de botas cosidas, e ao mesmo tempo folgar o dia. Saí de casa ainda o Sol estava baixo, e só estou a chegar agora. É que, enquanto a perna boa vai e vem, descansa a coxa. M’ocasião, ia já em Chão de Meninos quando…

 

(Interrompe o Coutinho que é Bernardino): Oh Jo’quim, espera lá. Não comeces já com as tuas histórias, porque já as ouvimos todas. Estamos mais interessados na fala do Caladinho

 

(Jo’quim Cagachuva) Eu também. Ele fala tão pouco, que é de aproveitar.

 

Era pacífico! Os quatro estavam ansiosos para ouvirem o Caladinho falar. Instintivamente, voltaram-se os três – O Rio das Sesmarias, como se calcula, ficou no mesmo sítio, pois sair do leito só com muita água de cheia – para o promitente falador, sentaram-se na beira do muro do quintal do Ti Joaquim da fruta e, de orelhas a jeito, ouviram o Caladinho:

 

Só precisava que o patrão me pagasse o suficiente para dar de comer aos meus filhos. Eu cumpri a minha obrigação com o trabalho combinado e ele…

 

(Continua – Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)

 

SBF

publicado por voltadoduche às 17:37

04
Out 10

(Continuação – No tempo da ditadura, durante a Guerra Colonial)

 

Oh Caladinho, deixa lá o andante… já se faz tarde e os meus amigos devem estar admirados com a minha demora, na certa, contarão que chegue com um grão na asa…, ou dois... 

 

Espera Coutinho que és Bernardino. Passam tão poucos carros, que é uma pena a gente não os ver.

 

O barulho foi aumentando e, ao cimo já se via o andante.

 

Estás ver Coutinho que és Bernardino, uma “arrastadeira” de duas portas preta… Olha, afinal são dois, e o outro também é preto e é um Ford. Ummm! Estes dois pretos e a estas horas? Não cheira a boa coisa…

 

E os carros lá continuaram em direcção a Albarraque.

 

Quinta do Olival, virando à direita a seguir à Quinta de Stº António, pelo Sigamó, Abílio e Cipriano, chegados ao Rio das Sesmarias. Conversa certa, mesmo estando só o sítio, pois as chuvas ainda não vieram e, mesmo sequinho, o Amigo Rio das Sesmarias, não perdia a oportunidade para meter conversa.

 

Então Coutinho que és Bernardino, o nosso amigo Caladinho também vai aprender a ciência da pedra?

 

(Diz o Coutinho que é Bernardino) O Caladinho aprender a ciência da pedra? Não Amigo Rio das Sesmarias, a ciência do Caladinho é outra.

 

E de ajuntamento a três, dum momento para o outro, ficou a quatro, o que, naquele tempo, podia ser perigoso – Mais de três podia ser manifestação subversiva.

 

(Continua – Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)

 

SBF

publicado por voltadoduche às 01:03

28
Set 10

(Continuação – Ainda no tempo da ditadura do “botas” e da Guerra Colonial.)

 

...

 

Pois é Coutinho que és Bernardino, o meu sobrinho sofre lá (na Guerra em Angola) e nós sofremos cá com a ausência dele, mas quem tem a culpa deste sofrimento todo, são os que mandam, mas ainda as vão pagar todas juntas. O tempo vai passar e voltar-se a nosso favor, já estou a ver o que vai acontecer…

 

Oh Caladinho, não me digas que também és bruxo? Como é que sabes o que vai acontecer lá p’ra diante?

 

Meu amigo Coutinho que és Bernardino (olhando na direcção do balcão e da porta e falando ainda mais baixinho), podemos continuar a conversa mas não aqui, é que as paredes têm ouvidos…

 

O quê, as paredes ouvem?

 

É isso mesmo… faz de conta, mas às vezes parece mesmo verdade.

 

Tá bem Caladinho, vens comigo até à pedreira do Ti Miguel, e contas tudo o que sabes para mim, e para os meus amigos que são de confiança.

 

Saindo pela esquerda, muito juntinhos à regueira da curva e de passo apressado porque, pelo barulho, lá vinha do lado da charneca, um andante com motor a botar fumo por tudo quanto é sítio, e, já no começo da rua para o olival, o Caladinho pára e espera pelo andante. O Caladinho era pessoa informada, e, por isso, era natural que quisesse ver o veículo motorizado.

 

(Continua)

 

(Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de Silvestre Félix)

 

SBF

publicado por voltadoduche às 16:47

06
Ago 09

 

NOTÍCIAS DE ANGOLA
Mais uma vez, o Coutinho que era Bernardino, ouvia com toda a atenção o Caladinho. Desta vez, e já o ano de 1962 ia por aí fora, lia um aerograma que tinha acabado de receber do Chico. Depois de se certificar que estava sozinho com o Cabouqueiro, começou a leitura;
«O meu plantão foi até às duas da manhã. Esteve tudo calmo, não aconteceu nada. Quando fui rendido no posto cinco, que dá para nascente, já se notava o céu menos escuro e não tardava a claridade da madrugada. A G3 hoje pesava aí uns cinquenta quilos e eu estava exausto. Adormeci rapidamente. Não teria passado um quarto de hora, abri os olhos sobressaltado, e vi clarões como se fosse o fogo de artifício lá da aldeia. Não era na aldeia, era no norte de Angola, numa terra que não era minha. O quartel estava mais uma vez a ser atacado e, como de costume, ao romper a madrugada. Os de Angola não queriam que eu lá estivesse. Até estávamos de acordo, eu também não queria lá estar. Os de Angola, usam como podem as suas armas para correrem connosco e o “botas” continua a dizer que “Angola é nossa!”.»
Extraído do escrito “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” de autoria de Silvestre Félix (SBF)
publicado por voltadoduche às 00:38

19
Jul 09

 

O CHICO ERA UM DELES…
Quando estava a chegar à esquina, e de ouvido o Coutinho que era Bernardino continuava melhor que todos, começou a ouvir uma fala assim… como um discurso bem falado.
Quem havia de ser, o “caladinho”. Lá está ele… mas…, o fulano está a falar sozinho. Pois claro, se estivesse alguém, como de costume estava calado. Deixa lá ouvir o que este marmanjo diz…
É verdade, e os soldados lá iam, todos certinhos, em bicha pirilau, a subir a escada do navio, e no cais, uma multidão a dizer adeus…, eram as mães, os pais, as mulheres, os filhos e toda a família. Era um mar de lenços brancos. Os soldados, à medida que iam chegando lá acima, voltavam-se, e tentavam corresponder aos acenos. Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos, deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados. Nos que ficaram e nos que foram. Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega ainda mandam, e o Zé não consegue reverter a situação.
Olha lá oh “Caladinho”, o que estás para aí a dizer, que eu bem ouvi, mas não percebi patavina?
Eh pá!... nem te senti chegar, oh Coutinho que és Bernardino. Estava a falar com os meus botões.
Botões? Então soldados, navios, Angola, botas, pide, isso é lá conversa de botões? Antes de mais nada, e para ver se te entendo, vou pedir uma charrete. Oh Ramos! Já vai. Diz o Ramos. Chega lá uma charrete, não, não! É melhor só um de três tinto, depois logo se vê como é que fica a secura.
Oh Caladinho, não está aqui mais ninguém, explica-me o que é essa coisa dos botões e soldados e botas e pide.
O Caladinho, olhando sempre à volta e para a porta, lá foi dizendo:
O Chico era um deles. Não sei se o vou voltar a ver. A minha Irmã criou aquele menino com tanto amor, tanto carinho, e agora o “botas” manda-o para a guerra e ainda por cima no dia 19 de Julho que é quando faz anos. O que tem ele a ver com a guerra? Bem que ele queria ir era para a França, a salto, em vez de ir para Angola. O Delgado é que devia ter posto mãos a isto. O “botas” ia logo tratar da horta para Stª Comba Dão e a Gertrudes não tinha chegado a ter um marido Contra-Almirante e Presidente da República.
Extracto de: “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” – Autoria: Silvestre (SBF)
publicado por voltadoduche às 15:16

04
Jul 09

 

AS TROPAS
Aquela manhã preparava um dia de calor a sério, nem vento a norte, nem véu na Serra com direito a ver a ponta do Palácio da Pena. O Coutinho que era Bernardino já tinha no bandulho as sopas de cavalo cansado que a Judi Caracoleta lhe havia preparado. O descanso na noite tinha passado depressa e, na cabeça ainda zonza, martelava aquela conversa de ontem à noite na taberna. Dizia aquele fulano bem posto, que parece trabalha na fábrica nova de Mem Martins e lhe chamam “o caladinho”, porque nunca diz nada e de vez em quando sai-se com umas que a gente não percebe, que tinha começado uma guerra nas Áfricas e que os nossos tropas iam começar a ir para lá combater. O pessoal ficou todo de orelhas em pé e de roda dele, todos quisemos saber mais, mas ele, como era costume, ficou muito assustado a olhar para todos os lados e para a porta, pagou a rodada de “ciganas”, e pôs-se a andar.
Bem, o Coutinho que era Bernardino, com aquelas “marteladas” na cabeça, lá saiu de casa e a passar o Santo António, cruza o caminho com o Chico da Beloura que lhe fez a conversa do tempo… que vai estar muito calor, que as ovelhas estão cada vez mais gulosas, que assim, que assado… e o Coutinho que era Bernardino, lá ia arrojando o esqueleto até às pedreiras do Ti Miguel, com o peso da picareta e ao dependuro no cinto de couro, aquele que o Cagachuva lhe arranjou vai para cinco anos, ainda antes de se ajeitar com a Judi Caracoleta, (tomando o fio) o martelo de corte, o escopro de pedra e a marretinha, tudo que lhe fazia falta naquele dia, para aplicar, com toda a sabedoria, a sua arte. Não havia um único santo dia que o Coutinho que era Bernardino, com mais ou menos charretes ou ciganas na pança, não dissesse a alguém que;
«Eu sou cabouqueiro… eu tenho a ciência da pedra!»
(A solidão era rainha e, por isso, muitas vezes tinha que o dizer para a própria pedra ou para as ferramentas)
 «Olha lá oh marretinha …(soluço) eu já te disse que tenho a ciência da pedra? (soluço)»
«E a marretinha: Sim, já me disseste!»
«E o Coutinho que era Bernardino continuava; Oh martelo de corte… (soluço) Eu já te disse que sou o melhor cabouqueiro da Abrunheira e arredores?»
«E o martelo de corte lhe dizia; Já, e muitas vezes. (continuava o martelo de corte) Oh Coutinho que és Bernardino, com o calor que está e porque as pedras não fogem, porque é que não vais à Ti Emília meter mais uma ou duas charretes no bucho? Assim refrescavas e davas descanso à gente.»
«E logo o Coutinho que era Bernardino; Olha, se calhar até é boa ideia.»
(CONTINUA)
Dicas: Charrete – Garrafa de mais ou menos 40 cl cheia de vinho tinto do barril; Cigana – A mesma coisa, mas a garrafa é de 33 cl; Marretinha – Marreta pequena para trabalhar pedra.
Autoria: Silvestre (SBF) 
publicado por voltadoduche às 17:46

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